A Bomba


(Cena: uma roda de amigos, papo solto, cerveja gelada, risada aqui e ali. Até que um solta a bomba…)

— Mano, eu não vou. Nem fodendo.

— Vai se ferrar, cara. Como assim, não vai?

— Não vou, porra. Ginecologista? Isso é coisa de mulher. Eu sou homem.

(Silêncio por dois segundos. O outro larga o copo na mesa, respira fundo, e manda a real.)

— Sim, somos homens. Mas vamos a médicos de mulher, ginecologista.
Sim, somos homens, mas temos peito, temos útero, temos mama.
Sim, somos homens, mas menstruamos.

— Tá, mas…

— Não fode. Sim, somos homens, mas alguns de nós escolhem gestar.
Sim, somos homens, apesar de termos nascido com um nome e um gênero que não batia com a gente. Porque, quando a gente nasce, não dá para escolher.

A gente cresce ouvindo “senta direito”, “fecha as pernas”, “ser menina é isso”. Mas dentro da gente? Nada bate com essa história.

Até que um dia, a gente descobre que dá para ser quem a gente realmente é.

E aí vem a parte que ninguém te conta: você vai precisar continuar cuidando do corpo que tem, mesmo quando ele não parece com o que sente.

(Outro gole na cerveja. O silêncio pesa.)

— Mas mano… não sei, é estranho.

— Estranho é morrer por orgulho. Estranho é ignorar um corpo que ainda é teu. Quantos de nós evitam o ginecologista? Não é porque não precisa. É porque não quer encarar.

Porque é desconfortável.
Porque o consultório é rosa e cheio de revistas da Cláudia.
Porque tem gente que olha torto.
Porque ninguém está pronto para explicar que sim, aquele homem de barba, com voz grave, precisa daquele exame ali.

E tem aqueles que não vão porque acham que não são mais homens o suficiente se precisarem disso.

(Ele joga um amendoim na boca, sem tirar os olhos do amigo.)

— Mas e aí, a gente finge que não existe?

A verdade é que não dá para fingir que o nosso corpo não tem histórico. Que a gente não tem mama. Que a gente não tem útero. Que a gente não tem um sistema reprodutivo que precisa de acompanhamento.

Isso não faz ninguém menos homem.

Menos homem é deixar de se cuidar por medo do que vão pensar.

(O amigo cutuca o rótulo da cerveja com a unha, desconcertado.)

— Tá. Mas vai que a médica… sei lá.

— Mano, eu sei. Nem todo mundo tem sorte de encontrar uma doutora boa, humana, que entende a nossa realidade. Mas sabe o que é pior? Não procurar nenhuma.

Porque no final das contas, é o teu corpo, a tua saúde, a tua vida.

(Outro gole. O silêncio agora não é peso, é reflexão. O amigo olha para o nada e solta um suspiro.)

— Tá bom, porra. Eu vou.

(Sorriso de canto de boca.)

— Isso aí. A gente tem o direito de existir. Mas tem que estar vivo para isso.


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